Helena Mendes Pereira | [ voltar ]

Alastrar, fazer caminho,
saber esperar por Paulo Canilhas
 

No deserto pode-se caminhar durante dias, semanas e até meses sem ver outra coisa além de areia; ora bem, chega sempre o momento em que aparece um oásis maravilhoso que convida a parar e reabastecer. Por mais duro que seja o trajeto que leva a um oásis, qualquer oásis merece sempre o esforço do caminhante. É tal a satisfação e a alegria obtidas ali que o caminho percorrido, a recordação do caminho percorrido, não o torna tão árduo. Repostas as forças no oásis, torna-se a empreender um caminho em que não é invulgar que o caminhante volte a impacientar-se. É assim até que, de repente, quando menos se espera – quase quando desespera –, volta a aparecer outro oásis. Pois é isto precisamente o que o deserto ensina: caminhar pela terra e parar onde houver água, é assim um dia após o outro até chegar o momento em que se descobre que não só se ama o oásis como também o próprio caminho: ama-se a areia, a dificuldade.[1]
 
Um texto crítico sobre um autor e a sua obra deve, talvez, começar por referências curriculares, passando por uma análise da criação e imiscuindo-se de subterfúgios poético-filosóficos, subjetivos e pessoais.  Talvez. Contudo, uma das vontade partilhadas por mim e pelo Paulo Canilhas (n.1969) é esta da busca de nós mesmos e desta urgente aprendizagem do silêncio, da calma e da paz interior, numa fuga sagaz à urgência dos dias (de que também padecemos) mas que queremos viver num absoluto conforto e, ao mesmo tempo, inquietação, de um estado de alma em que, sabendo-se de todos os areais dos desertos da vida e dos muito menos oásis, o que importa é o caminho, a aprendizagem e a base, o lastro que se cria na viagem. Gostei sempre do trabalho do Paulo Canilhas e gostei mais quando o meu olhar se confrontou com o seu belo cromático, num gesto de expressão livre, que ora nos sugere uma transnarratividade camuflada, ora nos desafia à abstração de todas as poéticas da cor profundas e intensas.

Quando desafiada a escrever sobre este seu LASTRO, patente em Óbidos (novaOgiva, galeria de arte contemporânea) de 25 de janeiro a 28 de março de 2020, não me ocorreu, sequer, hesitar. Houve sempre nos azuis e encarnados fugazes do Paulo Canilhas, a minha natureza intensa e fugaz, contrária (ora quente, ora fria) e livre de partir de pés descalços, em desapego, pela areia mais quente e mais dura, em busca do que de mim por vezes se perde na incapacidade de acreditar que o que é nosso está guardado e que é preciso esperar, meditar e acreditar. E é por isso que o artista que desenvolve sonhos na tela, o experimentalista completo que cruza meios e abre perspetivas a partir da pintura e do desenho como bases, conceptuais e plásticas da resistência, merece, primeiro, a nossa capacidade de parar o tempo, não ter lugar e vermo-nos na viagem de cada um destes epitáfios das raízes e das asas em que transitamos dia após dia.

Viver em verdade exige coragem. Conhecermo-nos a nós mesmos, percebermos que não somos fórmula e que não cabemos nas engrenagens, é um ato de vandalismo social. Mas é o que urge. Não temos que ser todos do mesmo, querer todos igual e desenhar o futuro na cópia do vizinho do lado. Não. A arte, sob todas as formas, permite-nos a excelência da originalidade, do ser único e ser real. Quem é arte, quem a respira, não pode cair no estratagema da cópia desleal do outro que invejamos sem percebermos que, na nossa essência e nos dizeres do nosso coração e da nossa intuição, reside o facto consumado de que nem caminho igual, nem areia de deserto comum. Cada um é um exercício, cada um tem um lastro, uma base, uma procura, um desafio existencial (pelo menos), uma missão criadora. Enquanto pensava o que escrever sobre o Paulo Canilhas, lia o Pablo d’Ors (n.1963). A composição da pintura, a complexidade e destreza dos objetos, feitos instalação e semântica, sugeriram-me esta metáfora do caminho, da verdade e da luz. Nos seus inconfundíveis negros, gestuais  e difíceis, a pintura do Paulo Canilhas é sempre caminho, é sempre repleta de passos e parece carregar a extensa pretensão do poder da Liberdade livre (e absoluta),  de que falava Rimbaud (1854-1891).

Quando parece que toda a possibilidade visual já foi experimentada, somos surpreendidos por mais uma variação, por mais um arabesco. Talvez aqui o desejo de ver fique saturado pelo excesso. Ou talvez não, e se deseje continuar a ver, a ser plasticamente saciado. Até à última imagem. Até à escuridão da sala.[2]

LASTRO reúne cerca de três dezenas de trabalhos do autor e apresenta-se na ousadia da vertigem entre a pintura e a ironia das propostas tridimensionais. Mas a espera está sempre lá. Aquela linha negra, como costura, que percorre as telas, unindo-as sem as querer ligar, é, em si mesma, a expressão da mão na matéria, da força do dilúvio emocional que é pintar e, simultaneamente, da pureza e do belo que traz às nossas vidas, questionando-nos e dando respostas e, acima de tudo, sendo parte do processo indizível do equilíbrio sem a negação de quem somos. Os objetos que o Paulo Canilhas aqui propõe intrigam-me. São como uma espécie de desafio à lei da gravidade, numa lógica de ready made visitado pelo saber-fazer absoluto e primordial.  O Paulo Canilhas é assim: alastrou, vai fazendo caminho e, a mim, a sua pintura é o compêndio da minha aprendizagem pela espera, do meu combate à urgência e à ansiedade da vida, num tempo que é novo e que traz o desafio daquela mesa (Selfportrait #2) como lugar da fé no que nos diz o coração.


Mais do que uma exposição, LASTRO é a afirmação de um modo de estar, de um jeito de ser e um convite a nos vermos por lá, pelo emaranhado de linhas e intensidade das cores que são o retrato do caos e da ordem que devemos deixar-nos ser sem medo da imperfeição inevitável que nem a arte evita ao mundo. Obrigada, Paulo, por me desafiares a ver-me através da mestria e da subtil violência da tua pintura. Obrigada.

Helena Mendes Pereira

[1] D'ORS, Pablo - The Friend of the Desert: A Novel. Lisbon: Quetzal, 2019. Pages 161 and 162.

[2] NOGUEIRA, Isabel - A Imagem no Enquadramento do Desejo.   Transnarratividade em Pintura, Fotografia e Cinema. Silveira: Book Builders, 2016. Page 65.

 

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